Movimentando 173
NÚMERO 173-Novembro 2020

Matéria 02 de 07

SISTEMA ÚNICO DE MOBILIDADE URBANA (SUM)

Sistema Único da Mobilidade (SUM) é apresentado no podcast Expresso, do website Mobilize Brasil, pelo diretor nacional do Instituto MDT, Nazareno Affonso

Poucos dias antes do primeiro turno das eleições municipais, em 6 de novembro de 2020, o diretor nacional do Instituto MDT, Nazareno Affonso, foi entrevistado para a edição número 25 do podcast Expresso, conduzido por Marcos de Souza, editor do website Mobilize Brasil e com participação da jornalista Regina Rocha. Apresentamos a seguir a transcrição dessa conversa, que também pode ser ouvida na íntegra por meio de link ao final na matéria. Veja nesta edição a transcrição dessa entrevista e acesse o podcast, se preferir ouvir o andamento do diálogo.

Em 6 de novembro de 2020, poucos dias antes do primeiro turno das eleições municipais, o diretor nacional do Instituto MDT, Nazareno Affonso, foi entrevistado para a edição número 25 do podcast Expresso, conduzido por Marcos de Souza, editor do website Mobilize Brasil e com participação da jornalista Regina Rocha. Apresentamos a seguir a transcrição dessa conversa, que também pode ser ouvida na íntegra por meio de link ao final na matéria. .

Marcos de Souza – Na semana passada o nosso diretor Henrique Ribeiro publicou um artigo no Mobilize 146 iniciando uma discussão sobre a ideia de uma política nacional para o transporte público. Algo como o SUS da mobilidade. Um sistema que permitiria que qualquer pessoa pudesse usar os serviços públicos, em qualquer lugar do país, de forma integrada, afina, o transporte é um direito social, incluído na Constituição do Brasil. .

Regina Rocha – Para entender melhor a proposição, nós entrevistamos o urbanista Nazareno Stanislau Affonso, provavelmente a primeira pessoa a propor publicamente essa ideia. Nazareno foi secretário de Transportes em Porto Alegre, Santo André e Brasília e hoje dirige o Instituto MDT, Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos. Ele iniciou a entrevista lembrando que no Brasil os governantes sempre deram prioridades a políticas públicas de mobilidade para o automóvel. .

Nazareno Affonso – Olha, é... A questão do transporte público, nós temos uma opção que o Estado Brasileiro fez de universalizar o uso e a propriedade do automóvel como política de Estado. Então, quando a gente fala de mobilidade e foi uma palavra que a gente lutou muito por ela. Porque antes a gente tinha transporte e de outro lado tinha trânsito, do outro lado tinha calçada, bicicleta, tudo separado. Então, a gente brigou muito para ficar tudo sob essa palavra. E na época havia também uma discussão se era acessibilidade ou mobilidade. Aí, a acessibilidade foi assumida muito pela luta das pessoas com deficiência. E aí ficou marcado que a acessibilidade é universal. Então, o primeiro princípio básico para a gente começa a conversar é que nós estamos falando de um Sistema Único de Mobilidade, não estamos falando de um Sistema Único de Transporte. E quando a gente fala de mobilidade, a gente está incluindo tudo. Inclusive o automóvel. Quer dizer, a gente não pode apartar o automóvel de uma política de mobilidade sustentável. Ele tem de ter o lugar dele. Hoje, ele reina, ele tem o estado a seus pés, tem o Estado aos pés da Indústria Automobilística, enquanto o transporte público, deslocamento a pé, bicicleta é um deslocamento de segunda classe. E, ao mesmo tempo, nós brigamos muito na Constituição para que o transporte fosse considerado o que ele é, um serviço essencial, como saúde e educação. E nós conseguimos essa vitória. E agora, mais recentemente, em 2015, por iniciativa da querida prefeita Luiza Erundina, a gente conseguiu fazer com que o transporte passasse a ser um direito social. A gente até discute se não deveria ser mobilidade um direito social, mas já é uma mudança muito grande. .

Marcos de Souza – Daí nós perguntamos: quais são os pilares necessários para a construção do Sistema Único de Mobilidade? Começa pelo governo? Envolve as empresas? Como fazer isso exatamente em um momento de crise no sistema de transporte brasileiro? Para responder, Nazareno voltou ao final dos anos 1970, quando a sociedade lutava duramente para melhorar seus direitos sociais. .

Nazareno Affonso – Olha, Marcos, é, em primeiro lugar, como estou há muito tempo eu digo que eu sou um eterno otimista. Porque eu sei que eu já passei por situações muito piores. Minha tese o nome dela era "Chega de enrolação, queremos condução". É sobre as lutas populares de 1978 a 1982, durante o governo Maluf. Naquela época, em São Paulo, só para você ter ideia, foram destruídas mais de 20 estações ferroviárias. Em Salvador, foi quebrada mais da metade da frota, com revoltas populares. Eu estava querendo mostrar que nós passamos por uma situação de uma calamidade muito grande e que a sociedade, quando se manifesta, ela intervém da política. Isto é muito estrutural para a nossa conversa, porque nós estamos defendendo o Sistema Único de Mobilidade, que ele comece envolvendo a sociedade e não indo para os espaços governamentais, apesar de a gente ter material para isso. E, aí, o que eu estou dizendo? Só para dar esse exemplo, que ele é muito rico, nessa época houve essas manifestações e em cima disso é que nasce o vale-transporte. E o vale-transporte tem um efeito gigantesco no para acalmar das revoltas populares, porque ele tira do embate político todos aqueles que têm carteira assinada. E eles vão pagar conforme o que está escrito no salário mínimo. Eles vão pagar 6% do salário mínimo. Tanto que aqueles que ganham muito não vale a pena o vale transporte. Mas aquilo teve um efeito muito grande...fora isso, o que houve? O Estado acorda. Então, se você andar em São Paulo, aquela mesma ferrovia e que eu andei...eu tenho fotos de 1973, que é uma coisa que você não acredita as fotos que eu tinha e é São Paulo. Hoje você tem a CPTM, a gente pode questionar, mas é uma... São trens de qualidade, há uma e de metroviária que a gente não tinha também. Fora o sistema de ônibus, faixa exclusivas. Eu estou citando São Paulo que é uma referência maior, mas hoje em dia, por exemplo, se a gente tiver que citar uma experiência exitosa era citar Fortaleza. .

Regina Rocha – Numa analogia com o Sistema Único de Saúde, que oferece atendimento médico gratuito a qualquer pessoa, a proposta do Sistema Único de Mobilidade parece envolver também a tarifa zero nos transportes públicos, não é? Não necessariamente, explicou Nazareno Affonso. .

Nazareno Affonso – Quase todas as vezes que a gente fala do Sistema Único de Mobilidade aparece a discussão da tarifa zero. Eu acho que a universalização do acesso é muito importante. Tanto que, se você olhar, a gente avançou, como eu estava dizendo, da qualidade, quer dizer, a gente saiu de uma coisa que era uma degradação para começar a ter qualidade no transporte público. E ele tem variado de cidade a cidade, tem várias experiências muito significativas disso. E vocês do Mobilize tem acompanhado com muito cuidado, com muita atenção essas experiências exitosas. O que a gente vê no sistema único, o principal elemento é estruturar o Estado brasileiro. E buscar recursos para que ele possa prover esse serviço. Quer dizer, daria para ter a tarifa zero, mas a tarifa zero pressupõe outras discussões, porque, quando a gente vê o transporte, a gente não vê só a universalização: a gente acha que tem um elemento estrutural no transporte público. A gente precisa que ele tenha qualidade. E a pandemia ajudou a gente a enxergar isso. Porque a gente só olhava custo, achando que isso é que expulsava a população do acesso ao transporte, mas a gente vê que a questão da qualidade pesa muito. .

Marcos de Souza – Ouvindo essas explicações do especialista a possibilidade de renovar, unificar o sistema de mobilidade no Brasil fica ainda mais distante neste momento de pandemia, porque exigiria muito mais investimento para a ampliação das frotas de trens e ônibus de forma a manter o necessário distanciamento social entre os passageiros. E quem poderia pagar essa conta bilionária? O carro particular, que sempre teve subsídios. .

Nazareno Affonso – Qual é o desafio que a gente tem hoje. A gente está vendo que o transporte público sofreu uma concorrência -- eu não digo predatória, mas uma concorrência pesada -- dos aplicativos, outra perda incrível foi a questão da crise econômica, que tirou muita gente que poderia pagar, deixou de poder pagar, e quando a gente fala de garantir essa parte de segurança sanitária, necessariamente você tem que imaginar que você precisa de mais frota. Não tem como agregar com a mesma frota. Esse é até um dos desafios que a gente coloca, a gente começa a ver logo de cara para a tarifa zero. Porque a tarifa zero vai gerar uma demanda adicional bem significativa; a gente tem experiência em vários lugares. Quer dizer, não vai continuar a mesma frota, vai ter muito mais demanda e isso tudo tem de ser pago por alguém. Ou a gente tem um fundo ou fazer uma coisa que é muito difícil: um dos maiores financiadores -- devedores, eu diria -- para um transporte de qualidade são aqueles que têm o automóvel, que só recebem benefícios, subsídios gigantescos, seja no uso do sistema viário, seja na... E o transporte público também você tem o jeito de otimizar o transporte fazendo com que ele saia do congestionamento dos automóveis. A mesma viagem que você levaria um tempo você agrega mais gente, e se você tiver faixas exclusivas, que é uma coisa baratíssima, que todas as cidades podem implantar, junto com isso ciclovias, ciclofaixas, nós teríamos uma mudança, uma oferta e um tempo dentro do transporte público muito menor do que as pessoas têm normalmente. Isso é provado. Em São Paulo, nós temos pesquisas que mostram uma redução bastante grande do tempo da pessoa dentro do ônibus. É o caso, por exemplo, de Brasília, em que nós temos linhas rodoviárias e o que as pessoas falam é "tudo bem, eu fico dentro do ônibus, só que fico 60 minutos", porque é uma viagem rodoviária. Imagina você entrar num ônibus ficar andando 60 km, 45 km dentro do ônibus. Não tem como você não ter o contato, mesmo você tendo o distanciamento. Então, o que a gente vê neste momento é que nós temos – digo nós assim como todos aqueles que defendem a mobilidade sustentável – e muitas ações que podem mudar muito a qualidade do transporte público. Mas ela não vai acontecer se a gente trabalhar sempre os privilégios e os subsídios gigantescos ao automóvel. Em vários lugares do mundo você paga uma taxa para estacionar. E mesmo na ‘Meca ‘do automóvel, que são os Estados Unidos, tem taxação do automóvel que é gigantesca. .

Regina Rocha – Mas quem vai colocar o guizo no gato? Como começar a estruturar esse Sistema Único de Mobilidade? Para o nosso entrevistado, a iniciativa deveria estar com o governo federal, a quem caberia coordenar os vários entes da sociedade e comandar as ações. .

Nazareno Affonso – Nós tivemos uma experiência nesse sentido bastante promissora. Nós estávamos discutindo a Lei de Mobilidade desde 1989, para você ter ideia. E essa discussão da Lei foi para dentro do Conselho das Cidades. Então, em primeiro lugar, uma coisa é você ser um ministro de um governo que não tem responsabilidade por políticas públicas e outra é você ter uma estruturação do Estado em que ele envolve a sociedade civil, envolve todos os entes e movimentos populares... municípios, estados, todo mundo trabalhando para desenhar esse novo estado provendo o transporte público como um serviço essencial e um direito social. Então, a função do governo federal é muito importante, porque ela é que vai dar a estruturação para criar as normas, para incentivar os estados e municípios a desenvolver as suas propostas, a buscar outras fontes de recursos. .

Marcos de Souza – E depois dessa nossa conversa com Nazareno Affonso fica muito claro que o SUS da Mobilidade não virá de graça. Ele depende, sobretudo, de uma pressão da sociedade e de uma articulação política nacional. .

Voltar